terça-feira, 23 de junho de 2015

Sobre o CFIT

Respost de uma matéria, do site Rottaativa, publicado em 21/06/2015, por Cmte.Maurizio Spinelli.

CFIT (ControlledFlightIntoTerrain) – livremente, colisão com o solo em voo controlado, é um termo que foi criado por engenheiros da Boeing nos anos 70 para definir acidentes aéreos oriundos de uma colisão contra o terreno, água ou qualquer outro obstáculo em condições de voo sob controle. Ainda sobre a Boeing, eles realizaram um estudo onde identificaram que esse tipo de acidente é o maior responsável por mortes na era da aviação comercial a jato, com mais de 9000 fatalidades!Meu primeiro contato com essa terminologia foi nos primórdios das aulas de Teoria de Voo durante meu curso de PP (Piloto Privado) com o saudoso Prof. Rances que, por ironia do destino,se envolveu em um acidente fatal a bordo de um R44 no ano passado – as informações preliminares indicam para um CFIT.


O que mais chama atenção é “CONTROLADO”, ou seja, como que uma aeronave controlada pode vir a colidir com alguma coisa? Essa dúvida nos revela a complexidade desse tipo de ocorrência.Acidentes envolvendo terroristas ou pilotos suicidas não contemplam os pressupostos para um CFIT que são a controlabilidade da aeronave e a integridade de seus sistemas. Caso estes não estejam presentes, a ocorrência pode passar a ser chamada de UFIT (UncontrolledFlightIntoTerrain). Por voo controlado, entende-se que o piloto em comando e a aeronave estejam aeronavegáveis no sentido mais completo da expressão. O ser humano gosta de exemplos para entender:


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A imagem acima ilustra com riqueza de detalhes a normal consequência de um CFIT: Destruição e morte. São raras as ocorrências onde se encontre um resultado diferente deste.

Em uma análise mais simplória do evento em tela, percebe-se que as condições não eram ideais para a realização do voo. Para os que se interessarem, acessem ao relatório completo e vejam também os aspectos psicológicos que motivaram a continuação do voo. Inclusive recomendo o acesso regular aos RFs (Relatório Final) que são elaborados e disponibilizados pelo CENIPA, excelente fonte de estudo.

Lembrem-se: Em prevenção de acidentes não há segredos nem bandeiras. Gosto de repetir isso toda vez que cito um RF de acidente. Algumas pessoas, por vezes, ficam chateadas por terem sido próximas dos envolvidos, mas a questão central é que na aviação, infelizmente, aprende-se com as falhas de nossos colegas e o maior sinal de respeito é fazer com que a fatalidade deles não tenha sido em vão, divulgando e mitigando causas prováveis.

Dito isso, gostaria de expor mais um exemplo, que desta vez conta com nuances pessoais, haja vista que os envolvidos eram grandes amigos meus.

Novembro de 2012, voo de instrução a bordo de um R22, condições meteorológicas adversas. Para quem é familiarizado com o Rio de Janeiro, a Serra da Grota funda estava “fechada”, devido ao teto baixo. Meu amigo e aluno, Felipe Berredo estava prestes a checar seu PCH, lhe faltava apenas “navegar” por cerca de 2 horas… Meu amigo, colega de trabalho e INVH Sylvestre Travassos, cerca de 1000 horas de voo, mais um dia de trabalho… Apesar das condições, decidem decolar e realizar o que chamávamos de “mini-navega” para o aeródromo de Angra dos Reis (SDAG), o tempo total serviria para completar o último requisito para a concessão da licença do aluno. Para o instrutor também seria muito bom, pois era um voo que lhe “engordaria” o saldo de horas a receber.

A rota já havia sido voada dezenas de vezes pelo Sylvestre, que durante suas folgas da escola voava um R44 que basicamente só ia para Angra, portanto nada de novo. Apesar disso parecer um dificultador para o acontecimento de um acidente, na verdade serviu como facilitador, serviu como um motivo a mais para embasar a decisão de realizar o voo, afinal era uma missão que poderia ser feita de olhos fechados.

Percebam que o enredo não é muito diferente do primeiro exemplo apresentado.

O Robinson R22 é uma aeronave muito simples. Não possui sistemas que permitam gravações de parâmetros de voo, muito menos “caixa preta” para análise de vozes, ainda assim, pela dinâmica dos fatos, tudo leva a crer que no momento em que tentaram passar pelo “V” da Grota Funda no sentido Recreio/Angra, foram surpreendidos pela baixa visibilidade e tentaram retornar para reestabelecer condições visuais de voo. Na chamada curva de reversão, vieram a colidir com a vegetação da serra e ambos perderam suas vidas.

Já disse antes, esse acidente me é muito próximo pois conhecia muito bem os envolvidos. Conhecia muito bem a aeronave. Conheço muito bem a região da ocorrência. Dois grandes amigos se foram.

Participei em primeira pessoa da remoção dos destroços do local. Para ilustrar a violência do impacto, posso dizer que até mesmo um piloto que visse o rescaldo sem saber do que se trata, teria dificuldades em entender que aquilo era uma aeronave. Um amontoado de metal contorcido. Foram necessários seis homens para remover a cabine da árvore que absorveu o impacto. Seis.

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Ainda não existe RF do CENIPA sobre o acidente, entretanto o mesmo já foi catalogado como CFIT para a ANAC.

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Cmte. Marquinhos, eu, Berredo e Sylvestre – O Berredo era o caçula da galera e “sofria” com nossas brincadeiras. Nesse dia da foto, achamos por bem deixá-lo de samba-canção, que era de algum tema infantil que agora me foge à memória. A tarja “censurado” fazia parte da brincadeira, pois a divulgamos amplamente para todos os outros alunos da escola! Os carrego assim, para sempre, em meu coração.

Como colunista do RottaAtiva e especialista em segurança de voo, sou muitas vezes incumbido de trazer temas, assuntos e exemplos tristes. Faz parte. Alguns pilotos, e me incluo neles, precisam vez em quando de um choque de realidade para entender que apesar de termos o privilégio de trabalhar voando, profissão considerada por muitos como a mais bonita,  também temos o revés desse glamour bem presente no nosso dia-a-dia: nossa profissão mata ! Ainda existem aqueles que insistem em se esquecer disso. Ainda existem aqueles que se acham super-heróis. Ainda existem aqueles que preferem pensar que essas coisas só acontecem com os outros. Mera ilusão! Nenhum piloto (exceto os raros casos dos suicidas) acorda pela manhã coma vontade de se envolver em um acidente aéreo e perder sua vida – e algumas vezes – levar outras consigo.

O fator que, geralmente, permeia um CFIT é o humano. Nenhuma novidade. Segundo o FCA 58-1 “Panorama Estatístico da Aviação Civil Brasileira – 2015″, que analisa o decênio de 2005 a 2014, o Julgamento de Pilotagem é o primeiro responsável pelos acidentes neste período. Inclusive trato sobre isso no meu artigo anterior “O Que Derruba um Helicóptero”.

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Essa estatística vem corroborar com outros estudos que apontam que o homem é responsável por mais de 80% dos acidentes aéreos.

Durante essa semana, a comunidade de pilotos de asas rotativas foi abalroada com a notícia da morte de mais um colega. Esse evento é recente, portanto todo cuidado é pouco na hora de tecer comentários e especulações. O panorama não é muito diferente de todos os outros exemplos que citei até agora. Tempo ruim, falha no processo decisório e algum tipo de incentivo/motivação/pressão em concluir a missão:Fortes indícios de CFIT.

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Apesar de não ter tido o privilégio de conhecê-lo, os comentários acerca do piloto envolvido, Cmte. Felipe Piroli são unânimes: Piloto padrão, pessoa sensacional, com alto senso de humor e capacidades de pilotagem acima da média! Não parece nem de longe alguém que tenha decidido se acidentar por livre e espontânea vontade. Aproveito para registrar meus sinceros e profundos pêsames às famílias e amigos dos envolvidos.

A expectativa é que quando um proprietário de aeronave contrata um piloto este entenda e respeite as indicações fornecidas, ou seja, que quando o piloto opte por cancelar ou postergar alguma missão, que o patrão acate a decisão acreditando no preparo do funcionário contratado. A realidade é diferente. Cada vez mais tenho sido informado de patrões que deliberadamente forçam a barra para a concretização de missões. Não foram poucas as vezes que me deparei com pilotos pousando em estado catatônico por sustos que passaram durante as tentativas de levar a cabo seus voos. O cenário de crise financeira e política no Brasil atinge diretamente o mercado de asas rotativas e vem prejudicar certas decisões, pois o temor de dar negativas a seus chefes pelo receio de perderem seus postos de trabalho e terem dificuldades de serem realocados está mais presente. Por outro lado, também existem os pilotos que, deliberadamente, expõem-se a riscos desnecessários, fazendo com que os operadores fiquem acostumados a concluir seus voos em qualquer condição, gerando assim um ciclo vicioso que geralmente só é interrompido por uma catástrofe.

Ainda outro aspecto: Consciência situacional. Por muitas vezes um piloto mais experiente pode estar mais próximo de um acidente do que um recém-formado. Estes por muitas vezes negligenciam aspectos básicos do voo como planejamento, consulta a meteorologia etc. Durante minha pesquisa para elaboração deste texto, tive a grata surpresa de encontrar um artigo do Cmte. Lucas Vieira, em português, que também trata de CFIT, mas nesse caso específico, gostaria de transcrever as palavras do autor no que se refere a consciência situacional, ou alerta situacional:

“Consciência situacional pode ser definida como: “a percepção precisa dos fatores e condições que afetam uma aeronave e sua tripulação durante um período determinado de tempo”.

De maneira simplificada, ter consciência situacional significa estar ciente do que se passa ao seu redor e com o pensamento à frente da aeronave.Esta percepção é afetada por diversos fatores, tais como: estresse, inexperiência, conflito interpessoal, expectativas, fadiga, desinteresse, distração, carga de trabalho e complacência, entre outros.

O excesso de confiança no controle de tráfego aéreo, sem o devido acompanhamento da navegação pelo piloto, e a tentativa de voo por referências visuais quando em condições meteorológicas desfavoráveis constituem dois cenários característicos e propícios à perda de consciência situacional.

Sua manifestação é notadamente maior no tocante à situação vertical da aeronave com relação ao solo ou obstáculos. (…)


Presente em 100% dos casos de CFIT, esse aspecto representa, em parte, a própria essência deste tipo de ocorrência, uma vez que, por definição, o acidente ocorre sem que a tripulação tenha consciência da rota de colisão na qual a aeronave se encontra”.

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